quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
A Guido Monterey - em jeito de homenagem!
Agora que as nove freguesias voltam a ter autonomia, temos um bom pretexto para pegar num texto bem colorido, que nos conduz para aqueles cenários animados que normalmente veneram o Natal e o nascimento de Jesus.É tão harmoniosa a mistura das cores, dos sons, da correnteza ordenada das águas, dos barcos, do povo nos seus afazeres, fossem festivos fossem de trabalho. Uma personificação muito real da vivência dos nossos pais e avôs. Até as criadas de servir foram trazidas para essa cascata, fazendo-nos lembrar as canseiras diárias e o veraneio que apesar de tudo, a ida ao lavadouro e à fonte propiciavam.Um retarto animado do quotidiano nos alvores do século XX.
Guido Monterey (José Augusto de Sousa Ferreira da Silva) merece esta referência - só por este texto - e merecia outras, quanto mais não seja pelas horas de trabalho de pesquisa (pré digital) e custos de investimento em obras que só hoje começamos verdadeiramente a conhecer e a saborear!
Como preâmbulo do livro "Castelo de Paiva, terras ao léu", podemos ler: "Castelo de Paiva, nove estrelas, um rosário. Uma sequência de montes e quatro rios demarcam o termo de Paiva, um redondel que sobe do Rio Douro até às cumeadas da "Serra Seca", trocado hoje o nome para "Arreçaio", em cujas cervanias pelejaram cristãos contra mouros no denodado esforça da reconquista.
Separando, a norte, a terra de Paiva da de Bemviver (Marco de Canaveses) e da de Penafiel de Canas, depois Penafiel de Sousa, o exultante Rio Douro confere-lhe os maiores trunfos paisagísticos desde os rincões marginais até aos cumes rapados das costeiras.
Ao longo do seu curso serpejantes as terras medievas de Lamego, de Mesão Frio, de Resende, de Aregos, de Baião, de Ferreiros, de Cinfães, de S. Cristovão de Nogueira, de Sanfins da Beira, de Benviver, de Paiva, de Penafiel, de Gondomar.
O Douro de ontem...
No estuário do Tâmega, o porto de Anégia. E, antes de entregar as suas águas ao Atlântico, as "civitas" de Cale à esquerda e de Portus à direita.
Por essa via, que as lendas acariciam e as tradições realçam, deslizaram, brancos como cisnes, os castiços barcos rabelos, uma reminiscência arcaica amoldada à corenteza e aos pegos, ajustando-se-lhes a vela árabe, que tomou o nome de "Latina".
Por esse Douro, acima ou abaixo, os "rabelos" iam e vinham, águas e ares despoluidos, olhando, nos vértices altivos, restos de castros lusitanos, a que o povo túrdulo deu o primeiro empurrão, monumentos de traça pré-histórica, que o enolítico vincou, ponteando as arribas e definindo um sistema clássico de habitação.
Na terra de Paiva o grande alinde é-lhe ofertado por esse rio feérico, com as suas altas encontas, aqui e ali cortadas pela regueira dos afluentes, cada um uma raridade sumptuosa a encastoar o "mavioso" rosário, rosal ou roseiral, ajeitando esse jardim alastrado e enchendo-o de susurros e de fragrâncias.
Outrora, quando as suas ninfas, essas "Ireninhas" ou "Cândidinhas", abarrotavam o ar de cantigas pelo verão ou de endechas pelo inverno, o rio punha as águas a brincar contra os rochedos que o enfrentavam, fazendo-se, ora engraçado, ora macambúzio, mas sempre tonitruante.
Revia-se depois, nas lindezas marginais, terras enfeitadas de carvalhos, de choupos e de salgueiros, que contrastavam com o dourado da "pedra-lousinha" entre a "Sardáurea" e o "Petraurito".
Tempos de um passado romântico em que os afluentes não eram ainda serviçais daquele patriarca senhoril, mas filhos traquinas, em folganças pegadas, de que o pai ria a bandeiras despregadas enquanto os chamava pelos seus próprios nomes: Paiva, Sardoura, Arda, Areja...
Numa estilística de valor, os quadros de traço mais vigoroso ou de tintas mais sedutoras apresentavam-se na confluência desses rios, Tâmega incluido, com destaque para Fornos, para Sardoura, para Pedorido.
Hoje, o Douro não passa dum rio sem alma...
Ficou sem os pegos, a turbulência, mesmo o génio, acadimado à força de barragens, "ramadas" de betão ou grades de cárcere, que lhe roubaram o sentido idílico, desde os "arrinhos", onde se faziam pescarias, festarolas e corridas de touros, às suas ninfas, essas "Ireninhas ou Cândidinhas", cujos cânticos se sumiram, porque o rio perdeu o ritmo, a própria musicalidade.
Os sáveis foram proscritos, as lampreias banidas e os barcos rabelos, ofuscados pelos comboios e pela viação rodoviária, deixaram-no para ali caído num fanico perene.
O rio, que já não é rio, inchou pela preguiça, sucumbiu à morrinhice, afez-se àquele torpor mórbido, de vez em quando cortado por um soluço de saudade que lhe desenxalma o corpo entumecido...
Com esses sumiços que lhe tiraram a vida com o afogamento dos areais de Boure, de Midões, de Pedorido, Castelo de Paiva sentiu-se mais e mais pobre. Desapareceram mesmo dos cardápios dos restaurantes e da mesa de rico e pobre os pratos em que fazia maior finca-pé.
E como a modorra se apega, as moças de Serradelo só confeccionam o seu pão-leve, gabado à troixe-moixe, pelas romarias aos seus santos predilectos. Senhora dos Milagres, Santa Eufémia, Senhora das Amoras, Santo Adrião, Senhora de Agosto, São Domingos, Santa Luzia, São Lourênço, Senhora dos Remédios...
E é nesse pão-de-ló de Serradelo, de paladar tão requintado, que se ensopa o tinto de Bairros, dando lugar a escaramuças em que o marmeleiro é rei e senhor.Especialmente pela aucaliptada freguesia do "Paraíso", na festividade que não honra Santa Eufémia, onde ao pão-leve se juntam os bifes de uma dúzia de bovinos e as tripas à portuguesa bem condimentadas pelos cominhos. Mas, o calor e a feijoada puxam por essas e por outras tantas folestrias...
Imaculados também não eram os festejos feitos a S. Lourenço de Bairros ou a S. Miguel do Castelo de Fornos. Da outra banda, do Escamarão, até vinham as mulheres de vassouras aperradas...
Diferentes, cheias de sumo místico, foram as procissões do "Corpus Christi" em Sobrado de Paiva. Formadas junto à igreja matriz, seguiam um itinerário costumeiro, com janelas alindadas por colchas de damasco, pelo Largo (hoje do Conde de Castelo de Paiva), rua Direita, rua e Largo de S. Sebastião, "Fonte" e rua José Luciano.
Faziam-se também procissões pela Semana Maior, só que nessas o povo trajava de luto, sinal de respeito por Aquele que redimiu a humanidade na cruz.
As romarias tinham, nessas épocas, um sentido mais místico, fazer e pagar promessas, embora com as folganças do arraial. Haviam os "Votos".
Em Sobrado, aquando da festa a Nossa Senhora dos Milagres, o "Voto do Anjo" em que se juntavam sete cruzes das freguesias circunvizinhas; em Bairros, o "Voto de Fornos" pela romaria que honra a Senhora dos Remédios; na Raiva, o "Voto à Senhora das Amoras", vindo aqui, a três de Maio, todas as cruzes das freguesias do concelho com os seus "clamores" e, em peso, a Câmara Municipal. Igualmente à Senhora das Amoras ia o "Voto de Arouca", na segunda-feira do Espírito Santo com todas as cruzes da vila e do vale...
No início deste século vivia-se, dava gosto viver-se, romanticamente pelas terras de Paiva. Com bailaricos despretenciosos, com piqueniques animados, com magustos risonhos. Jogava-se a "politica" como um tempero, os "progressistas" do Conde levavam a palma, como se jogava a bisca ou a sueca pelas grandes noites inverneiras.
Já, então, se erguiam as grandes figuras ou personalidades do século, a "geração de ouro" paivense.
Em Sobrado, o Conde de Castelo de Paiva, o Dr. Henrique da Silva Amorim, o Augusto da Maia Romão, o Sebastião d'Oliveira Damas; na Quinta da Fisga, em Bairros, os Salemas; na Quinta da Póvoa, em Pedorido, os "Aranhas", na Quinta do Castelo de Baixo, em Fornos, os "Varanda".
Em finais do século passado a "viela" de Sobrado dera lugar ao "Largo", um pedaço de terra batida, ladeado por tílias e por palmeiras, onde o rapazio jogava o pião e as"criadas "atravessavam rumo ao "chafariz" ou ao lavadouro público para as Bandas da Boavista.
O centro de convívio fixava-se na "Farmácia Gonçalves", dada a falência precoce da "Assembleia", alastrando os temas de conversa pela politica, a maioria progressista enfiava num saco a minoria regeneradora; pelas carências ou abastanças do concelho, gabando-se, à tripo forra, a qualidade do vinho fosse ele branco ou tinto, do mel, do azeite e da manteiga...
Num ponto eram unânimes. Na excelência da paisagem paivense, especialmente nos trechos virados ao Douro, aquele panorama de Catapeixe enchia os olhos, como era retumbante a vista de Sardoura para Entre-os-Rios. Mas, a "sala de visitas" estava um pouco mais além, no alto da Serra de S. Domingos, onde havia um encadeamento de sortilégios, os pendores das arribas, os arabescos das encostas, aquele promontório de Oliveira do Arda...
E aqui as ninfas do Douro, essas "Ireninhas ou Candidinhas", ora cantavam, ora rezavam, ao compasso dos balanços do rio por onde desciam rabelos de cordame froixo ou por onde subiam de velas opadas..."
Martinho Rocha
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